segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Tanto que Brísida Vaz se embarcou, veio um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:

 JUDEU -Que vai cá? Hou marinheiro! 
 DIABO- Oh! que má-hora vieste!
 JUDEU- Cuj'é esta barca que preste?
 DIABO-Esta barca é do barqueiro.
 JUDEU- Passai-me por meu dinheiro.
 DIABO- E o bode há cá de vir?
 JUDEU- Pois também o bode há-de ir.
 DIABO- Que escusado passageiro!

 JUDEU- Sem bode, como irei lá?
 DIABO- Nem eu nom passo cabrões.
 JUDEU- Eis aqui quatro tostões
e mais se vos pagará.
Por vida do Semifará
que me passeis o cabrão!
Querês mais outro tostão?

 DIABO- Nenhum bode há-de vir cá.

 JUDEU- Porque nom irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
 DIABO- E ò fidalgo, quem lhe deu...
 JUDEU- O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel,
castigai este sandeu!

Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
co’a beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!

                 JOANE -Furtaste a chiba cabrão?
Parecês-me vós a mim
gafanhoto d'Almeirim
chacinado em um seirão.

 DIABO- Judeu, lá te passarão,
porque vão mais despejados.

 JOANE- E ele mijou nos finados
n'ergueja de São Gião!

E comia a carne da panela
no dia de Nosso Senhor !
E aperta o salvador,
e mija na caravela!

 DIABO- Sus, sus! Demos à vela!
Vós, Judeu, irês à toa ,
que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela!

Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno

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